TEORIA DO CONTRATO SOCIAL
A teoria contratualista, da origem convencional da sociedade humana, teve sua gênese mais remota nas especulações filosóficas dos sofistas, desenvolvendo-se na Idade Média através da Escola Espanhola. Identificou-se com o jusnaturalismo a partir de Hugo Grotius, que deu as bases doutrinárias desenvolvidas pelos filósofos do século XVII. Em Emmanuel Kant atingiu o contratualismo uma sólida precisão científica[4].
No mundo moderno foi Hobbes o mais destacado expositor da idéia do pacto social. Mas, como já vimos anteriormente, partia Hobbes do pressuposto de que o homem, em estado de natureza, era de uma ferocidade instintiva impeditiva da convivência pacífica. Vivia em estado de luta permanente. O homem é o lobo do homem — foi sua máxima[5].
Consequentemente, os homens realizaram o pacto voluntário constitutivo do Estado, delegando cada um, ao governo organizado, a totalidade dos seus direitos naturais de liberdade e autodeterminação[6]. Convencionaram todos a sua submissão física e espiritual ao poder diretivo, em benefício da paz social e da segurança de todos. Daí a sujeição total do homem ao Estado e o absolutismo necessário do poder soberano[7].
Essa concepção voluntarista do Estado foi desenvolvida de maneira mais humana e mais racional por Locke, precursor do liberalismo na Inglaterra, o qual limitava o poder de governo ao controle das relações externas do homem no meio social[8].
Os homens não delegaram ao órgão diretivo da sociedade todos os seus direitos, mas somente aqueles necessários à manutenção da paz e da segurança de todos. O poder público é instituído por um pacto voluntário, artificial, porém de fundo utilitário, com o objetivo precípuo do bem comum[9].
Ao Estado cabe regulamentar as condições externas da vida em sociedade e, ao mesmo tempo, respeitar e garantir aqueles direitos fundamentais da pessoa humana, que lhe são anteriores e superiores. Nestes termos, deu Locke o necessário respaldo de humanismo e liberalismo à doutrina contratualista. Dada a conservação, pelos pactuantes, dos seus direitos naturais e, conseqüentemente, do seu poder originário de deliberação, assiste-lhes a qualquer momento o direito de insurreição, isto é, de mudar a forma ou a composição do governo que se houver desviado da sua finalidade, que é a de promover a paz, a segurança e o bem-estar da sociedade.
JEAN JACQUES ROUSSEAU[10]
A este genial filósofo coube a tarefa de dar à teoria contratualista a sua máxima expressão[11].
Natural de Genebra (1712-1778), destacou-se, dentre todos os teóricos do voluntarismo, pela profundidade da sua construção filosófica e pela amplitude da sua influência em todo o panorama do mundo moderno. Seus livros a respeito da formação e da fundamentação dos Estados — Discurso sobre as causas da desigualdade entre os homens e o Contrato Social — tiveram a mais ampla divulgação em todos os tempos, sendo recebidos como evangelhos revolucionários da Europa e da América no século XVIII.
No seu Discurso desenvolve Rousseau a parte crítica e, no Contrato Social, a parte dogmática. Este último, que representa, na expressão de Bergson, “a mais poderosa das influências que jamais se exerceram sobre o espírito humano”, continua sendo objeto de discussões entre os mais altos representantes do pensamento político universal, quer pelos seus erros que a evolução do mundo trouxe à tona, quer pelo seu conteúdo respeitável de verdades imperecíveis[12].
O Estado é convencional, afirmou Rousseau. Resulta da VONTADE GERAL, que é uma soma da vontade manifestada pela maioria dos indivíduos. A nação (povo organizado) é superior ao rei. Não há direito divino da Coroa, mas, sim, direito legal decorrente da soberania nacional.
A soberania nacional é ilimitada, ilimitável, total e inconstrangível. O governo é instituído para promover o bem comum, e só é suportável enquanto justo. Não correspondendo ele com os anseios populares que determinaram a sua organização, o povo tem o direito de substituí-lo, refazendo o contrato… (sustenta, pois, o direito de revolução)[13].
Sob o martelar constante dessas máximas que empolgaram a alma da humanidade sofredora, ruíram-se os alicerces da construção milenária do Estado teológico e desencadeou-se a revolução francesa contra a ordem precária do absolutismo monárquico.
No seu ponto de partida, a filosofia de Rousseau é diametralmente oposta à de Hobbes e Spinoza[14]. Segundo a concepção destes, o estado natural primitivo era de guerra mútua: status hominum naturalis bellum fuerit. Para Rousseau o estado de natureza era de felicidade perfeita: “o homem, em estado de natureza, é sadio, ágil e robusto”. Encontra facilmente o pouco de que precisa. Os únicos bens que conhece são os alimentos, a mulher e o repouso. Os únicos males que teme são a dor e a fome[15].
Entretanto, para sua felicidade, a princípio, e para sua desgraça, mais tarde, o homem adquiriu duas virtudes que o extremam dos outros animais e que, pouco a pouco, modificaram o seu estado primitivo[16]:
● a primeira, a faculdade de aquiescer ou resistir; e
● a segunda, a faculdade de aperfeiçoar-se.
Essas duas capacidades, auxiliadas por múltiplas circunstâncias fortuitas, sem as quais a humanidade teria ficado eternamente na sua condição primitiva, desenvolveram a inteligência, a linguagem, e todas as outras faculdades que os homens haviam recebido em potencial[17].
Por outro lado, o surgimento da metalurgia e da agricultura veio engendrar a desigualdade. Os que acumulavam maiores posses passaram a dominar e submeter os mais pobres. A propriedade individual do solo, a riqueza, a miséria, as rivalidades, os sentimentos violentos, as usurpações dos ricos, os roubos dos pobres, desencadearam as paixões, abafaram a piedade e a justiça, tornando os homens avaros, licenciosos e perversos[18].
Nesse período, que foi de transição do estado de natureza para a sociedade civil, os homens trataram de reunir suas forças, armando um poder supremo que a todos defenderia, mantendo o estado de coisas existente[19].
Ao se associarem, porém, tinham necessidade de salvaguardar a liberdade, que é própria do homem e que, segundo o direito natural, é inalienável. O problema social consistia, assim, em encontrar uma forma de associação capaz de proporcionar os meios de defesa e proteção, com toda a força comum, às pessoas e aos seus bens, e pela qual cada um, unindo-se a todos, não tivesse de obedecer a senão a si próprio, ficando tão livre como antes do pacto[20].
Esse convênio determinante da sociedade civil, isto é, esse contrato social, teria resultado, assim, das seguintes proposições essenciais:
Cada um põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e cada um, obedecendo a essa vontade geral, não obedece senão a si mesmo.
A liberdade consiste, em última análise, em trocar cada um a sua vontade particular pela sua vontade geral. Ser livre é obedecer ao corpo social, o que equivale a obedecer a si próprio. (“JEAN-JACQUES ROUSSEAU – JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO – 1Library PT”) O homem transfere o seu “eu” para a unidade comum, passando a ser parte do todo coletivo, do corpo social, que é a soma de vontades da maioria dos homens. O povo, organizado em corpo social, passa a ser o soberano único, enquanto a lei é, na realidade, uma manifestação positiva da vontade geral.
Com essa “volonté générale”, eixo de toda a construção filosófica de Rousseau, confunde-se a soberania, que é inalienável, indivisível, infalível e absoluta. (“(PDF) XIII JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO -II – Academia.edu”)
● Inalienável porque, se o corpo social cedesse a sua vontade, deixaria de ser soberano. A nação não aliena, não transfere a sua vontade; apenas nomeia representantes, deputados, que devem ser denominados, mais exatamente, comissários, e devem executar a vontade nacional com mandato imperativo, isto é, mandato válido enquanto o mandatário bem servir[21].
● Indivisível porque, a vontade é geral ou não o é. Não sendo geral, a vontade é particular, e como vontade particular não pode obrigar a todos. (“JEAN-JACQUES ROUSSEAU – JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO – 1Library PT”)
● Infalível porque, a vontade geral, por ser geral, encerra a verdade em si mesma. (“JEAN-JACQUES ROUSSEAU – JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO – 1Library PT”)
● Absoluta, no sentido de que o corpo social não pode sujeitar-se à vontade particular no que tange às relações externas dos indivíduos em sociedade, nem à vontade de outras nações, embora deva respeitar e garantir os direitos naturais, personalíssimos, de cada um. (“JEAN-JACQUES ROUSSEAU – JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO – 1Library PT”)
“Finalmente, por ser inalienável, indivisível, infalível e absoluta, a vontade geral é também SAGRADA e INVIOLÁVEL.” (“(PDF) XIII JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO -II – Academia.edu”)
O Contrato social de Rousseau, embora inspirado em idéias democráticas, tem muito do absolutismo de Hobbes, diz Jacques Maritain, acrescentando que essa teoria “infundiu nas novas democracias uma noção antitética de soberania que veio abrir caminho para o Estado totalitário”. (“JEAN-JACQUES ROUSSEAU – JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO – 1Library PT”)
O Prof. Ataliba Nogueira entende que a teoria de Rousseau reduziu o homem à condição de escravo da coletividade, justificando toda espécie de opressão.
Contestando essa teoria nos seus fundamentos, observa o Prof. Machado Paupério que:
“ensinando Rousseau que o estado natural do homem era o de isolamento, imaginou-se, daí por diante, que a sociedade e o Estado eram artificiais, o que não é absolutamente verdadeiro”[22].
Mantendo-se rigorosamente dentro do terreno das abstrações racionalistas — escreveu Queiroz Lima —, a teoria de Rousseau mostrou bem cedo a inanidade do seu teorismo transcendente, servindo de alvo fácil às arremetidas do ecletismo oportunista e inconsequente. (“JEAN-JACQUES ROUSSEAU – JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO – 1Library PT”)
O Prof. Duguit afirma que o pensamento de Rousseau inspirou a filosofia panteísta de Hegel, em que os juristas germânicos se abeberaram para a pregação da sua doutrina de absolutismo e violências.
Defensor brilhante da concepção aristotélico-tomista do Estado, acentua Alceu Amoroso Lima que a teoria do Contrato social é precursora da teoria do distrato social com que a revolução russa procura destruir violentamente a ordem burguesa e liberal, arrastando nas suas ondas os direitos da lei natural e da lei divina.
Essas e muitas outras críticas formuladas pelos pensadores modernos e pelos escritores positivistas, baseados em observações indutivas, ressalvam, entretanto, a importância transcendente da teoria contratualista como primeiro alicerce do Estado liberal. Foi ela a base filosófica da revolução francesa, que proclamou: os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. “O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais do homem.” (“JEAN-JACQUES ROUSSEAU – JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO – 1Library PT”)
A maior vulnerabilidade do contratualismo está no seu profundo conteúdo metafísico e deontológico. Sem dúvida, a falência do Estado liberal e individualista, que não pôde dar solução aos problemas desconcertantes manifestados pela evolução social a partir da segunda metade do século XIX, trouxe à tona muitos erros dessa teoria. A estruturas mística revelou-se inadequada à solução dos problemas reais criados pela civilização industrial e muito bem retratados na famosa Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIX. (“JEAN-JACQUES ROUSSEAU – JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO – 1Library PT”)
Entretanto, encerra a teoria do Contrato social um conteúdo respeitável de verdades imperecíveis, que continuará dominando superiormente o pensamento democrático da atualidade e do futuro.
BIBLIOGRAFIA:
- DALLARI, Dalmo de Abreu. – ELEMENTOS DE TEORIA GERAL DO ESTADO – Ed. Saraiva – São Paulo. (“Iraque, ONU e proteção dos direitos humanos – Jus Navigandi”) (“Iraque, ONU e proteção dos direitos humanos – Jus Navigandi”)
- BASTOS, Celso Ribeiro. – CURSO DE TEORIA DO ESTADO e CIÊNCIA POLÍTICA – Ed. Saraiva – São Paulo (“DE TEORIA DO ESTADO E CIÊNCIA POLÍTICA – Kufunda.net”) (“DE TEORIA DO ESTADO E CIÊNCIA POLÍTICA – Kufunda.net”)
- AZAMBUJA, Darcy. – TEORIA GERAL DO ESTADO – Ed. Globo – São Paulo
- MALUF, Sahid. – TEORIA GERAL DO ESTADO – Sugestões Literárias – SP
- Constituição da República Federativa do Brasil
- FILOMENO, Jose Geraldo Brito. – MANUAL DE TEORIA GERAL DO ESTADO – Forense Universitária – Rio de Janeiro
- ARAÚJO, Luis Ivani de Amorim. – TEORIA GERAL DO ESTADO – ed. Forense – Rio de Janeiro
- ZIPPELIUS, Reinhold. – TEORIA GERAL DO ESTADO – Fundação Calouste Gulbenkian – Lisboa – Tradição de Karin Praefke e Aires Coutinho
[4] (PDF) XIII JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO -II – Academia.edu, https://www.academia.edu/40028867/XIII_JUSTIFICA%C3%87%C3%83O_DO_ESTADO_II.
[5] (PDF) XIII JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO -II – Academia.edu, https://www.academia.edu/40028867/XIII_JUSTIFICA%C3%87%C3%83O_DO_ESTADO_II.
[6] (PDF) XIII JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO -II – Academia.edu, https://www.academia.edu/40028867/XIII_JUSTIFICA%C3%87%C3%83O_DO_ESTADO_II.
[7] (PDF) XIII JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO -II – Academia.edu, https://www.academia.edu/40028867/XIII_JUSTIFICA%C3%87%C3%83O_DO_ESTADO_II.
[8] (PDF) XIII JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO -II – Academia.edu, https://www.academia.edu/40028867/XIII_JUSTIFICA%C3%87%C3%83O_DO_ESTADO_II.
[9] (PDF) XIII JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO -II – Academia.edu, https://www.academia.edu/40028867/XIII_JUSTIFICA%C3%87%C3%83O_DO_ESTADO_II.
[10] Jean-Jacques Rousseau foi um importante filósofo, teórico político, escritor e compositor autodidata suíço. É considerado um dos principais filósofos do iluminismo e um precursor do romantismo.
[11] JEAN-JACQUES ROUSSEAU – JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO – 1Library PT, https://1library.org/article/jean-jacques-rousseau-justifica%C3%A7%C3%A3o-do-estado.y609r2gy.
[12] JEAN-JACQUES ROUSSEAU – JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO – 1Library PT, https://1library.org/article/jean-jacques-rousseau-justifica%C3%A7%C3%A3o-do-estado.y609r2gy.
[13] (PDF) XIII JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO -II – Academia.edu, https://www.academia.edu/40028867/XIII_JUSTIFICA%C3%87%C3%83O_DO_ESTADO_II.
[14] JEAN-JACQUES ROUSSEAU – JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO – 1Library PT, https://1library.org/article/jean-jacques-rousseau-justifica%C3%A7%C3%A3o-do-estado.y609r2gy.
[15] (PDF) XIII JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO -II – Academia.edu, https://www.academia.edu/40028867/XIII_JUSTIFICA%C3%87%C3%83O_DO_ESTADO_II.
[16] JEAN-JACQUES ROUSSEAU – JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO – 1Library PT, https://1library.org/article/jean-jacques-rousseau-justifica%C3%A7%C3%A3o-do-estado.y609r2gy.
[17] (PDF) XIII JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO -II – Academia.edu, https://www.academia.edu/40028867/XIII_JUSTIFICA%C3%87%C3%83O_DO_ESTADO_II.
[18] JEAN-JACQUES ROUSSEAU – JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO – 1Library PT, https://1library.org/article/jean-jacques-rousseau-justifica%C3%A7%C3%A3o-do-estado.y609r2gy.
[19] Teorias sobre a formação do estado – Cola da Web, https://www.coladaweb.com/direito/teorias-sobre-a-formacao-do-estado.
[20] JEAN-JACQUES ROUSSEAU – JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO – 1Library PT, https://1library.org/article/jean-jacques-rousseau-justifica%C3%A7%C3%A3o-do-estado.y609r2gy.
[21] JEAN-JACQUES ROUSSEAU – JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO – 1Library PT, https://1library.org/article/jean-jacques-rousseau-justifica%C3%A7%C3%A3o-do-estado.y609r2gy.
[22] JEAN-JACQUES ROUSSEAU – JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO – 1Library PT, https://1library.org/article/jean-jacques-rousseau-justifica%C3%A7%C3%A3o-do-estado.y609r2gy.
Pesquisa e compilação – Prof. Artur Cristiano Arantes
Homepage – https://professorarturarantes.com/