“O JURIDIQUÊS”
Em aulas passadas por várias vezes chamamos a atenção para a simplificação do texto, para sua clareza, como forma a facilitar o entendimento, dissemos que a CLAREZA é uma virtude essencial da comunicação.
A Associação dos Magistrados iniciou uma campanha para simplificar a linguagem jurídica e reacendeu o debate sobre a prática da Justiça do País.
Assim, está aberta a temporada de caça a um antigo inimigo da Justiça, que a corrói por dentro tanto quanto a morosidade nas sentenças e a estrutura arcaica dos tribunais. É o JURIDIQUÊS, o uso de um português arrevesado[1], palavrório cheio de raciocínios labirínticos[2] e expressões pedantes[3].
É desafiadora a iniciativa da AMB de alterar a cultura linguística dominante na área do Direito. A Justiça deve ser compreendida em sua atuação por todos e especialmente por seus destinatários. Compreendida, torna-se ainda mais imprescindível à consolidação do Estado Democrático de Direito.[4]
Veja esse texto:
“O vetusto vernáculo manejado no âmbito dos excelsos pretórios, inaugurado a partir da peça ab ovo, contaminando as súplicas do petitório, não repercute na cognoscência dos frequentadores do átrio foren.”
Vetusto = Cuja idade é excessivamente avançada; velho ou antigo
Vernáculo = Língua oficial e própria de um país, nação ou região.
Linguagem correta, sem estrangeirismos na pronúncia,
Vocabulário ou construções sintáticas; castiço (de boa qualidade)
Manejado = manuseado, utilizado
Âmbito = dentro de determinados limites
Excelsos Pretórios = pretório excelso: Apelido dado ao Supremo Tribunal Federal (STF)
Ab ovo = expressão latina que significa “desde o ovo” (ou seja, “desde o início”, “desde a origem”)
Súplicas = pedidos – pedir com clemência
Petitório = petição inicial em que se formula o pedido
Repercute = impressiona
Cognoscência = quem realiza o ato do conhecimento
Átrio = sala principal, contígua à entrada das casas, no antigo mundo romano
Foren = Forense – fórum
“O vetusto vernáculo manejado no âmbito dos excelsos pretórios, inaugurado a partir da peça ab ovo, contaminando as súplicas do petitório, não repercute na cognoscência dos frequentadores do átrio foren.”
A velha linguagem utilizada dentro dos Tribunais, desde a petição inicial, contamina os pedidos da petição inicial e não impressiona quem realiza o ato de conhecimento no mundo forense.
(ou seja, não impressiona os juízes)
Com palavras mais fáceis. O texto fica enxuto, sem que seu sentido seja prejudicado e os termos técnicos sejam deixados de lado[5]. (“Idioma forense encontra resistência junto à população”)

O português enviesado faz da Justiça um território hostil ao leigo.
Márcio Chaer, advogado, jornalista e diretor de redação do site Consultor Jurídico (www.conjur.com.br) diz que decisões incompreensíveis são como o câncer: ninguém pode ser a favor. Os advogados, principalmente, poderiam desistir de entupir suas petições de argumentos inúteis e sintetizar seus pedidos[6].
Observa ainda que embora haja ministros no STF que fazem de seus votos capítulos enciclopédicos, contudo, esses votos são tão preciosos que acabam por nortear o Direito no país todo, a opinião corrente é que a simplificação da linguagem jurídica não só é útil, como aconselhável. O cerne da questão é como saber o ponto de equilíbrio entre simplicidade e precisão.
O linguista, dicionarista e professor da Unesp de Araraquara Francisco da Silva Borba acredita que não há como escapar do tecnicismo. Diz ele:
“A linguagem técnica tem de ser exata. Ela não pode ser ambígua nem conotativa[7]. O jargão jurídico é opaco para o leigo, mas não para o profissional[8]“
Borba lembra ainda que a dificuldade de entendimento do cidadão comum não se restringe à área do Direito, a exemplo da Medicina, cujo jargão muitas vezes é incompreensível para quem não é do ramo.
“Toda profissão e atividade tem seu jargão. Isso é inevitável. O que é nocivo é o uso de palavras ou expressões rebuscadas quando há outras que dizem a mesma coisa” (Márcio Chaer)[9]
RISCOS NA SIMPLIFICAÇÃO
É perfeitamente possível combinar rigor técnico e concisão. Exemplo:
– O profissional pode referir-se, em sua petição, aos
“fundamentos adotados pela respeitável sentença de primeira instância”
– Para isso gastando oito palavras, ou simplesmente escrever
“tese monocrática”
– Que diz a mesma coisa com duas.
A locução é muito técnica? É. Mas a técnica, usada corretamente, torna as coisas mais rápidas e mais compreensíveis para os operadores envolvidos[10]. A ser considerado tal ponto de vista, nem todo juridiquês é ruim[11]. “Ruim é o pernosticismo”[12]. (Sabatini Giampietro Netto)
Não poderia ter sido mais feliz a receita para o aperfeiçoamento da Justiça brasileira formulada pelo ministro Joaquim Barbosa, em seu objetivo, conciso e comedido discurso de posse na presidência do Supremo Tribunal Federal. Para o novo presidente da Corte Suprema, precisamos de uma Justiça “sem firulas, sem floreios e sem rapapés”.
FIRULAS são argumentos artificialmente complexos, usados como expediente diversionista, para impedir ou retardar a apreciação da essência das questões em julgamento (o mérito da causa). Apegos a detalhes formais sem importância é um exemplo de firula[13].
FLOREIOS são exageros no uso da linguagem, oral ou escrita. Expediente empregado em geral no disfarce da falta de conteúdo do discurso, preenche-o de redundâncias, hipérboles e adjetivações.
RAPAPÉS são mesuras desmedidas que mal escondem um servilismo anacrônico.
Todos devemos nos tratar com respeito e cordialidade, dentro e fora dos ambientes judiciários, mas sempre com o virtuoso comedimento[14].
FIRULAS, FLOREIOS e RAPAPÉS são perniciosos porque redundam em inevitável desperdício de tempo, energia e recursos[15]. Combater esses vícios de linguagem, por isso, tem todo o sentido no contexto do aprimoramento da Justiça.
O oposto da firula è é a objetividade
O contrário dos floreios è é a concisão
A negação dos rapapés è é o comedimento
A salutar receita do ministro Barbosa recomenda discursos objetivos, concisos e comedidos. São discursos que, aliás, costumam primar pela elegância[16]. É uma recomendação dirigida a todos os profissionais jurídicos: magistrados, promotores e advogados. Precisam todos escrever e falar menos, para dizerem mais.
Arrazoados jurídicos e decisões longas são relativamente recentes. Nas primeiras décadas do século passado, elas ainda eram escritas à mão. Isso por si só já estabelecia um limite (por assim dizer, físico) aos arroubos. Os pareceres de Clóvis Beviláqua, o autor do anteprojeto do Código Civil de 1916, tinham cerca de cinco ou seis laudas[17].
Depois, veio a máquina de escrever. Embora tenha tornado a confecção de textos menos cansativa, ela também impunha limites físicos à extensão[18]. No tempo do manuscrito e da datilografia, o tamanho do texto era sempre proporcional ao tempo gasto na produção do papel.
O computador rompeu decididamente este limite. Com o “recorta e cola” (o famoso Ctrl C e Ctrl V) dos programas informatizados de redação, produzem-se textos de extraordinárias dimensões em alguns poucos segundos.
Os profissionais do direito não têm conseguido resistir à tentação de fabricar alentados escritos abusando dos recursos da informática. “Clientes incautos ainda são impressionáveis e ficam orgulhosos com a robustez das peças de seu advogado.” (“Opinião – Objetividade, concisão e comedimento – Folha de S.Paulo”)
Claro, há questões de grande complexidade, que exigem dos profissionais do direito maiores digressões e fundamentações, gerando inevitavelmente textos mais extensos.Tamanho exagerado nem sempre, assim, é sinônimo de firula, floreio ou rapapé[19]. Mas é um bom indicativo destes vícios, porque os casos realmente difíceis correspondem à minoria e são facilmente reconhecidos pelos profissionais da área. Não se justifica grande gasto de papel e tinta na significativa maioria dos processos em curso[20].
Pois bem. Se a receita do ministro Barbosa melhora a Justiça, então a questão passa a ser a identificação de medidas de incentivo ao discurso objetivo, conciso e comedido[21]. A renovação da linguagem jurídica necessita de vigorosos estímulos. Alegar que estimular maior objetividade fere o direito de acesso ao Judiciário ou à ampla defesa é firula. Lamentar que a concisão importa perda de certo tempero literário das peças processuais é floreio. Objurgar que o comedimento agride a tradição é rapapé[22]. Se a exortação do ministro Barbosa desencadear, como se espera, a renovação da linguagem jurídica, a sua posse na presidência do Supremo Tribunal Federal se tornará ainda mais histórica.
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FOLHA DE S.PAULO – 01 de janeiro de 2013 – Fábio Ulhoa Coelho
SIMÕES, S. L. Língua: a prática sem segredo. Série Palavra Final. V.10. São Paulo: Uninove, 2012
[1] Feito ao revés, que não é direito, difícil, obscuro, ininteligível: é sinônimo de: enredado, intrincado
[2] Que é tortuoso ou sinuoso
[3] GABARITO DAS AUTOATIVIDADES – UNIASSELVI, https://www.uniasselvi.com.br/extranet/layout/request/trilha/materiais/gabarito/gabarito.php?codigo=252326.
[4] (PDF) 2ª edição | Dê Rodrigues – Academia.edu, https://www.academia.edu/6579331/2a_edi%C3%A7%C3%A3o.
[5] técnica de interpretação – Redação Jurídica – Passei Direto, https://www.passeidireto.com/arquivo/76071646/tecnica-de-interpretacao.
[6] TÉCNICAS DE REDAÇÃO JURÍDICA – Redação Jurídica – Passei Direto, https://www.passeidireto.com/arquivo/67913828/tecnicas-de-redacao-juridica.
[7] Idioma forense encontra resistência junto à população, https://www.conjur.com.br/2005-nov-16/idioma_forense_encontra_resistencia_junto_populacao/.
[8] Luiza’s Blog: JURIDIQUÊS NO BANCO DOS RÉUS, https://luizabrito67.blogspot.com/2011/10/juridiques-no-banco-dos-reus.html.
[9] Idioma forense encontra resistência junto à população, https://www.conjur.com.br/2005-nov-16/idioma_forense_encontra_resistencia_junto_populacao/.
[10] Idioma forense encontra resistência junto à população, https://www.conjur.com.br/2005-nov-16/idioma_forense_encontra_resistencia_junto_populacao/.
[11] Técnicas de Redação Jurídica – Teoria e Prática da Redação Jurídica, https://www.passeidireto.com/arquivo/144417575/tecnicas-de-redacao-juridica.
[12] Pernosticismo é sinônimo de: pedantismo, pretensão, presunção, afetação
[13] Objetividade, concisão e comedimento, https://cosantiago.blogspot.com/2013/01/objetividade-concisao-e-comedimento.html.
[14] Opinião – Objetividade, concisão e comedimento – Folha de S.Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/86549-objetividade-concisao-e-comedimento.shtml.
[15] Opinião – Objetividade, concisão e comedimento – Folha de S.Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/86549-objetividade-concisao-e-comedimento.shtml.
[16] Opinião – Objetividade, concisão e comedimento – Folha de S.Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/86549-objetividade-concisao-e-comedimento.shtml.
[17] Objetividade, concisão e comedimento, https://cosantiago.blogspot.com/2013/01/objetividade-concisao-e-comedimento.html.
[18] Opinião – Objetividade, concisão e comedimento – Folha de S.Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/86549-objetividade-concisao-e-comedimento.shtml.
[19] Objetividade, concisão e comedimento, https://cosantiago.blogspot.com/2013/01/objetividade-concisao-e-comedimento.html.
[20] Objetividade, concisão e comedimento, https://cosantiago.blogspot.com/2013/01/objetividade-concisao-e-comedimento.html.
[21] Opinião – Objetividade, concisão e comedimento – Folha de S.Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/86549-objetividade-concisao-e-comedimento.shtml.
[22] Brevidade das petições judiciais: tamanho é documento? https://www.conjur.com.br/2021-dez-11/queiroz-brevidade-peticoes-judiciais-tamanho-documento/.